sábado, 17 de novembro de 2012

O entardecer da República


Sentado em frente a televisão, o velho acompanhava as notícias com o desconfortável sentimento de déjà vu. Todo feriado eram as mesmas velhas e trágicas manchetes de dezenas de acidentes nas estradas. Sangue e morte pareciam escorrer pelas telas dos gigantes aparelhos. E que estranho fascínio pareciam ter tais cenas de tragédias e desgraças para as pessoas. Desde tenra idade acostumam-se as crianças com absurda e descabida de sentido, violência. As telas ficavam cada vez maiores como que a garantir aos espectadores que nenhuma réstia de agonia passasse desapercebida. Nessas horas o velho sentia saudades dos velhos aparelhos em preto e branco. Talvez fosse o diminuto tamanho de suas telas, ou quem sabe o tempo considerável que levavam para aquecer os fusíveis, o fato é que toda a família se amontoava em frente a TV em, hoje longínqua, comunhão. Sentia saudades do Vigilante Rodoviário, recorda o velho enquanto assiste as coloridas imagens de ônibus sendo incendiados. Nos antigos seriados não se precisava de cores para separar os mocinhos dos bandidos. Talvez fosse o excesso de cor que ofuscava o bom senso de seu povo, considera o velho. Ou quem sabe o tamanho exagerado das telas fizesse com que todos tivessem perdido o foco. Talvez precisasse retornar mais cedo a revisão com seu oculista, reflete o velho sentindo inquietante falta da turbidez que a catarata, extirpada pela precisão da tecnologia médica, lhe causava na distinção de cores e formas. Graças a maravilhosa evolução da ciência, hoje não se ficava mais refém de muitas das limitações da idade que antes lhe terminariam com a autonomia e independência. Liberdade era uma dádiva que este velho sabia apreciar e valorizar. Essa, assim como a TV preto e branco, em breve, não teria muita serventia a julgar pelo que mostravam as imagens do noticiário. Quando presos eram capazes de comandar atentados organizados em tantos lugares desse país sem que as autoridades conseguissem conter o terrorismo instaurado, algo virtualmente insano, pelo menos para um velho tolo, devia estar sucedendo. Devia ser a tal realidade virtual que tanto ouvira falar sem nunca compreender o sentido. Virtuais deviam ser as grades que, se supunha, privava a liberdade dos presos. Virtuais seriam os conceitos de certo e errado que deviam aquecer as leis que regem o virtual conceito de Estado de Direito. Virtual, com toda certeza, era a presença do Estado como mantenedor da ordem e da segurança de um povo, pensa o velho acompanhando a imagem de uma mãe com seu bebê dando uma entrevista de trás de um imenso portão de ferro.  Liberdade dependia de que lado, e de qual grade, se está. As coisas deviam estar muito mais desfocadas do que seu cérebro senil era capaz de entender, suspira o velho cansado. E podiam ficar piores, resigna-se o ancião com o semblante marcado pelos anos de experiências. Em épocas, nem tão distantes, o seio dos presídios produziram quadrilhas tão organizadas e ardilosas que foram capazes de dominar a toda uma nação sem a necessidade de fuzis e granadas, lembra o velho astuto. Não se detém ratos com grades. E os maiores ratos de sua pátria ainda estavam bem longe das grades e muito próximos do poder, lastima o idoso mudando de canal. Era hora da novela preferida de sua velha e já pressentia os passos lentos, mas decididos de sua companheira de décadas de alegrias e decepções. Não importava o tamanho do aparelho ou a precisão das imagens, sua véia ainda olhava para a tela com o mesmo deslumbre e devoção que há cinqüenta anos. Graças a Deus algumas coisas, virtualmente, não mudavam com o evoluir dos tempos, pensa o velho com seu enrugado sorriso.

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