quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Triunvirato de Circunstâncias


Os três homens que agora descansavam no largo da praça, sob a sombra das árvores e observando o tremular da grande bandeira, ainda chamavam a tenção dos transeuntes que passavam no largo nesse final de tarde. Três conhecidas personalidades da política local. Três imponentes figuras que ainda mobilizavam os ânimos e o cenário político nesse pequeno e pitoresco reino. Décadas de história foram escritas por essas mãos. Muitas páginas, vários rascunhos e inúmeros equívocos foram construídos enquanto eles haviam sido soberanos desse império. Cada qual deixara sua marca. Mas nenhuma marca poderia causar mais assombro ou desconforto do que ver esses três homens hoje juntos. Juntos, mas até quando?
- Que festança eles fizeram, hein? Parecia que a luta tinha se encerrado de vez. Eu confesso que me deu um frio no estômago quando ouvi todos aqueles foguetes e fogos. Achei que Justiça tinha sido definitiva. – relata Chucrute com a voz um tanto mais arrastada que o habitual.
- Quanto foguete! Que dinheirão jogado fora. Literalmente queimado. Não entendo como as pessoas desperdiçam dinheiro com essas bobagens. – lamenta Zangão, abanando a cabeça, inconformado.
- A luz luxuriante dos fogos e o ruído fragoroso dos foguetes não ocultarão por demasiado tempo o fato de que Justiça ainda não se posicionou em definitivo. – exclama, eloquente, o Alquimista, enquanto os outros dois o olhavam como que hipnotizados.
- O que importa agora é que a campanha está, pelo menos temporariamente, suspensa. Nós não podemos mais continuar nossa caminhada ou Justiça se voltará contra nós. – informa Zangão, o sisudo, abrindo um jornal e iniciando sua leitura.
- É uma pena. Eu estava gostando tanto da companhia dos amigos. – lamenta Chucrute, passando os braços sobre os ombros dos outros dois sentados ao seu lado - Cada passo dessa caminhada foi um aprendizado para mim. Lembro-me até hoje de quando você, Alquimista, me iniciou nesse rumo da política. Lembro-me como se hoje fosse e ao me lembrar turvam-me os olhos de lágrimas. – continua comovido, provocando um rosnado de desagrado em Zangão.
- Eu também me recordo bem. – rememora o Alquimista com o olhar no horizonte e a voz firme e cadenciada que lhe caracterizava - Você era, Chucrute, ainda inexperiente. Carregava consigo a impetuosidade da juventude e a ânsia insaciável e pueril de aprender. Estava sempre me questionando, curioso. Por isso eu lhe mandava para os recôncavos mais distantes do reino, assim eu gozava de um pouco de sossego e podia governar em paz.
- Você criou o monstro, Alquimista! – debocha Zangão, com um meio sorriso, sem tirar os olhos do jornal. – De um moleque perguntador, virou um beijoqueiro chorão. Que bela fórmula.
- Não seja implicante, Zangão. No fundo, no fundo, você até que gosta de mim. – retruca o alemão, rindo e apertando mais o braço em torno do sisudo.
- Estou me acostumando com você. – responde o outro, arrumando os óculos no nariz. – É como esses óculos. Um dia tive de me acostumar com eles. Sofri um pouco no inicio, mas afinal me rendi. E torço para que eles funcionem bem, como torço por você.
- Um curto e objetivo resumo dos fatos! – comenta o Alquimista – Bem a sua cara, Zangão. – completa e ergue-se do banco - Mas, não sem pesar, preciso me despedir dos amigos. Com esses novos ventos que Justiça soprou por aqui, preciso trilhar meu destino.
- Tudo bem, amigo. Já sabe que caminho seguir? – pergunta o ariano.
- Sigo, como sempre segui, o caminho claro e iluminado de minha consciência e minhas convicções. – responde o outro com firmeza, apertando a mão de Zangão. – Até breve!
- Até. Se você tiver alguma dificuldade para dormir, por causa da consciência, eu tenho uns remédios aqui. Também preciso tomar, de vez em quando. – oferece Zangão.
- Não vai ser necessário, Zangão. Obrigado pelo oferecimento. Mas como Alquimista, eu tenho lá minhas poções.
- Me dá cá um abraço, Alquimista. – ergue a voz o alemão, apertando o homem com força e tacando-lhe um beijo na careca - Terei de me conter para não chorar ou o sisudo aí vai ter um ataque cardíaco. – continua, com os olhos marejados – E na idade dele não podemos arriscar, não é?
- Lá vem você de novo com essas piadinhas sem graça. – resmunga Zangão para Chucrute e antes de voltar ao seu jornal, acrescenta para o Alquimista: - Dê lembranças a Poliana.
- Eu darei. Até mais meus amigos! Espero que nos encontremos novamente nessa, ou em outra prodigiosa jornada. – despede-se, cruzando com o olhar altivo e passos decididos, a praça.
- Será que ele volta? – pergunta Chucrute
- Depende do vento. – responde Zangão, seco - Eu também tenho de ir. Nós nos veremos, com quase certeza. Você não vai me deixar em paz tão cedo, pelo que já aprendi.
- Claro que não vou. – gargalha o outro - Eu sei ser insistente. Acompanho você até seu carro.
- Eu não vim de carro. Vim a pé. Você já viu o preço do combustível?! Mais dinheiro para ser queimado, literalmente. – queixa-se o Zangão.
- Eu me diverti muito esses dias com sua sovinice. – zomba o Chucrute.
- Espero que tenha aprendido com ela. Para o caso de você virar rei. – aconselha o outro com ares de professor.
Enquanto Zangão e Chucrute se despediam, o Alquimista se aproxima retornando ao grupo.
- O que foi amigo? Esqueceu alguma coisa? – questiona o alemão.
- Fiquei sem transporte.
- O carro enguiçou? – pergunta Zangão – Tomara que não seja nada sério. O valor que estão cobrando nas oficinas hoje em dia são de arrepiar os poucos cabelos que me restam.
- Não é o carro. É a montaria. – responde Alquimista. – Não quer voltar de onde veio.
- Você veio a cavalo?! – surpreende-se Zangão
- Explica bem isso. Começa do inicio Alquimista. Que história é essa de montaria? – indaga Chucrute, questionador como sempre.
- É uma história longa, mas vou resumir pois a noite já está a espreita e eu tenho de retornar. Há décadas eu montei um potro selvagem. Um alazão estradeiro, viril e indomável. Juntos trilhamos os mais áridos caminhos. Vencemos as mais árduas batalhas. Com o tempo o animal foi perdendo o viço, o vigor e, entre tropicões e desvios, esqueceu o rumo de sua morada. O potro selvagem de minha mocidade, fogoso e destemido, corajoso e audaz, transformara-se com o passar dos anos em um capão submisso. Sem cerne e sem serventia. Com o peito sufocado, mas minha consciência tranquila, tomei a mais dolorosa escolha de toda minha humilde existência.
- Matou o pobre animal, foi? – pergunta Chucrute, que a essas alturas soluçava copiosamente no ombro de Zangão.
- Não. Troquei por uma mula. E aí esta a raiz do meu problema. O diabo da mula empacou e não quer sair do lugar. Será que vocês tem alguma ideia de como se desempaca uma mula? – pergunta Alquimista com pressa.
- Já tentou as taquaras? – pergunta Zangão
- Taquaras?
- É. Aqueles taquarões da Poliana e do Golesmina. Você pode montar no bicho e segurar uma taquara na frente dela, com as folhas a mostra. Assim ela vai tentar alcançar os brotos e caminhar. Ela vai seguir o rumo que você quiser. Como se faz com o povo em época de eleição. - sugere Zangão ao Alquimista, enquanto Chucrute assoava o nariz e secava as lágrimas.
- Boa ideia. Não sei como não pensei nisso antes. Vou fazer isso. Adeus novamente. – despede-se Alquimista apressando o passo.
- Eu sempre me emociono quando ouço ele falar. – diz Chucrute – Ele é melhor que você nos discursos.
- É. E você é bem melhor que nós dois nos beijos. – afirma Zangão.
- Um elogio! Vindo de você, sempre tão econômico! – alegra-se Chucrute
- E eu já venci vocês dois. Você, venci mais de uma vez, se não me falha a memória.
- Eu sabia! Não podia ser um simples elogio. Você não dá ponto sem nó, né sua raposa velha?! – gargalha Chucrute acompanhando o outro na caminhada.
- Dar ponto sem nó é um desperdício de tempo e trabalho. E você sabe quanto custa um rolo de linha?! – continua o sisudo provocando outro acesso de riso no ariano.
Enquanto os dois homens se afastavam da praça uma forte rajada de vento varre o local, levando consigo as bandeiras vermelhas e os restos da festa que há poucas horas movimentara o largo. No outro extremo da rua, o Alquimista seguia seu caminho. Ereto em sua nova montaria, empunhando firmemente sua taquara, cantarolava com voz de barítono e um rasgo de nostalgia, uma melodia que embalara muitas de suas cavalgadas de outrora: “Vento negro, campo afora, vai correr! Quem vai embora tem que saber.... é viração!”

2 comentários:

  1. Querida POLIANA !
    Sensacional...Ri até as lágrimas... Você é muito perspicaz, criativa, observadora . ADOREI. Acho que, sem sombra de dúvida, chegará o dia em que você vai compilar todos os seus escritos e publicar em belo livro... serei a primeira a adquiri-lo... parabéns... um abraço e..."vamos... em frente ! "... kkkkkk

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  2. Cara Poliana! Um livro com esses contos e vou ser o primeiro da fila. Que tal vincula-los ao Facebook????? serão milhares de "seguidores".....

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