sexta-feira, 17 de maio de 2013

Hipócrates e hipocrisias


Seu corpo há muito perdera o vigor de outrora, pensava o velho enquanto cruzava, com passos curtos, o trajeto do mercadinho até sua casa.  Galgar os quatro degraus da entrada também exigia certo esforço e concentração. Ainda podia recordar os tempos em que os saltava de dois em dois sem sequer piscar os olhos. A pressa e a arrogância da mocidade impediam de pensar em tolas e mesquinhas consequências, como um tornozelo torcido ou um quadril fraturado. Com o passar das décadas e a lentidão cruelmente imposta ao seu enrugado corpo, já não havia espaço para pressa na vida desse ancião. Mas sobrava tempo para recordar e refletir. Quanta hipocrisia um velho precisava assistir e presenciar ao longo de uma vida inteira. Talvez fosse por isso que a tolerância advinha com a maturidade no mesmo ritmo em que se enrijeciam as articulações e enfraqueciam os músculos. De sua varanda, sorvendo o bom chimarrão, eterno parceiro de reflexões, podia visualizar o antigo hospital da cidade. Como crescera e envelhecera, esse também. Apesar das inúmeras reformas e ampliações por que passara e ainda passava, guardava alguns traços nostálgicos do prédio que um dia fora. Muito em breve não restariam mais as grandes janelas com venezianas, típicas dos longínquos anos de sua inauguração. O concreto e as formas lineares e austeras, próprias da modernidade, mudariam para sempre a velha e fora de moda arquitetura do prédio. Eram os ganhos do progresso e do crescimento. O vai e vem frenético de carros, vans e ambulâncias mostrava que a saúde avançava também. Só não sabia ao certo para que lado, pensa o velho observador. Sorvendo mais um gole de seu mate, observa a grande quantidade de pessoas que aguardavam na recepção do pronto socorro. Dizia-se atualmente na mídia que faltavam médicos em seu país para atender a demanda de doentes em municípios pequenos e até médios como o seu. Essa era a causa principal da falência da saúde, afirmavam os mais entendidos membros do governo: a falta de médicos e principalmente a escassez desses profissionais que se dedicassem a atuar na saúde básica e preventiva. Preferiam, os jovens doutores, dedicar-se as especialidades médicas. Hoje em dia, na medicina, o ser humano se dividia em partes. E, ao que parecia a este idoso, poucos eram os que se dispunham a juntá-las. Coisas dessa modernidade um tanto quanto desconexa. Mas não caberia justamente ao Estado deliberar e regular quantos e que tipo de profissionais suas universidades e faculdades formariam? Para esse velho ignorante as coisas pareciam confusas. Diferentes do tempo em que trabalhara na agricultura. Tudo era mais coerente naquela época. Quando o mercado pedia por feijão, plantava-se mais feijão. Jamais plantara mandioca e esperara colher feijão. Não fazia sentido. E só plantava feijão se o preço fosse justo e competitivo, caso contrário, plantava-se pasto para engordar o gado. Uma comparação simplista de um velho tolo, certamente.
Se o problema residia apenas em pequenos municípios, onde os médicos não se firmavam pelas precárias condições locais, então como explicar as constantes manchetes da mídia de superlotações em gigantes hospitais públicos de grandes metrópoles? Não era raro assistir as imagens de pessoas em cadeiras de rodas e macas aguardando uma internação. Em sua miopia de idoso, não parecia possível que mesmo várias centenas de médicos pudessem resolver a falta de leitos, remédios e exames. Ou será que podiam? Talvez fossem sobre-humanos esses profissionais. Mesmo em grandes centros urbanos sobravam queixas de falta de médicos no sistema público para atender em emergências e postos de saúde. Seria mesmo, como deixavam entender alguns, pura falta de humanidade dessa categoria na hora de honrar seu juramento? Não queriam trabalhar no SUS por mera mesquinharia e falta de compaixão? Com um suspiro, o velho recorda-se do tempo em que abandonara a vida no campo. Perder sua lavoura, repetidas vezes, pela estiagem, lhe causava ainda hoje, enorme aperto no peito. Que diria se fossem vidas humanas perdidas. Os médicos, com certeza, não deviam se abalar com as pequenas agonias do cotidiano da saúde pública brasileira. Deviam ser insensíveis, os tais homens de branco. Gente sem coração, certamente. Conseguiam pairar alheios, e de mãos amarradas, a dor, ao sofrimento e a morte. Trariam médicos do exterior, anunciavam os governantes. Estaria resolvido o problema. O velho, ignorante e tosco, pensava em que tipo de profissionais seriam estes, os de fora. Deviam ser como máquinas. Provavelmente robôs. Só assim conseguiriam suportar, e escapar ilesos, à ineficiência e desumanidade de nosso caótico sistema público de saúde. Pelo menos poderiam assistir aos jogos da Copa do Mundo no Brasil, os tais estrangeiros. Estádios de futebol sempre hão de abundar no país do carnaval eterno. Na experiência desse velho, onde se plantam falácias só se colhe hipocrisia.


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