sexta-feira, 31 de maio de 2013

Trânsito de intransigências


O trânsito de bobos da corte e pajens reais, que corriam baratinados de um lado a outro da avenida central do reino, era frenético. Pior que isso só o trânsito de carros em horários de pico no local onde, neste inicio de noite, nossa rebelde monarca tinha mais uma de suas conhecidas crises de destempero e pirraça. Terminadas as festividades do rally, a vasta corte da rainha se ocupava em tentar evitar que as crises de egocentrismo e soberba de Poliana acabassem chamando a atenção de Imprensa Livre e das temíveis e sarcásticas redes sociais. No epicentro do alvoroço: ela, a eterna rainha dos excluídos. Conhecida por jamais voltar atrás em uma decisão, mesmo quando nitidamente equivocada. Capaz de quase perder sua adorada coroa por pura ausência de bom senso e excesso de ego. Ego e senso crítico nunca conseguiram coexistir em harmonia e simbiose no democrático reinado da doce e destemida Poliana. Sufocar e amordaçar o bom senso era marca registrada de sua alteza. O cenário nessa noite era teatral. Uma tresloucada rainha encontrava-se acorrentada nos enormes vasos de flores que há anos interrompiam o trânsito da velha e histórica rótula em frente ao castelo. Em torno da rainha, dezenas de companheiros tentavam, em vão, convencer a monarca a deixar o local e evitar uma tragédia midiática e um orgasmo de Oposição com a tragicômica situação.
- Pela barbas de Fidel, Poliana! Deixa de ser intransigente. Nós precisamos tirar esses vasos daí e liberar de vez o trânsito dessa área. Não tem mais como sustentarmos essa situação. O povo, há anos, clama que as rótulas voltem a ser o que são: rótulas! Feitas para fazerem o trânsito fluir. - argumenta um dos pajens.
- O povo ignorante não entende nada de trânsito! Eu mandei fechar as rotatórias e não aceito ser contrariada. As rótulas ficaram muito mais vistosas e ecologicamente corretas com meus magníficos vasos de flores no meio. Só quem dirige ou caminha pelo reino é que não consegue enxergar isso! - berra a irredutível Poliana.
- Aí é que está o problema, rainha. Não é só o povo, Imprensa Livre e Oposição que criticam as alterações que nós fizemos no trânsito central do reino. A empresa especializada no assunto, que nós mesmos contratamos, com dispensa de licitação e a preços um tanto salgados, concorda com eles. - esclarece, um pouco constrangido, o bobo do tráfego e trânsito.
- Eu contratei essa gente para concordar comigo, não com os outros! Que tipo de profissionais são esses, afinal? Só por que são especialistas acham que sabem mais que eu que sou uma rainha aclamada por meu povo? Faculdade qualquer um faz, mas para ser rainha duas vezes como eu, tem que ser uma sumidade, isso sim! - revolta-se a rainha, rubra da mais legítima indignação.
- Por favor, majestade! Tenha piedade de nós, seus fieis e submissos vassalos. Nós não temos mais desculpas esfarrapadas para defender a obstrução das rótulas e a manutenção dos seus vasos. - implora um dos companheiros do clã da rainha.
- É só nós usarmos bons argumentos, seus molóides! E enrolar os otários. Divulguem nossas maravilhosas estatísticas que demonstram claramente que nos três anos em que fechamos as rótulas não houve mais nenhum acidente no local. Só algumas dezenas de colisões frontais com os vasos no primeiro semestre de implantação desse inovador projeto de lentificação do trânsito. Mas foi só porque essa colonada burra demorou um pouco pra se acostumar com minha magnífica ideia. - rebate a rainha sem se desgrudar dos vasos ou mudar de opinião.
- Nós estamos divulgando essas estatísticas fajutas há anos, Poliana. Nessa altura do campeonato até o mais ignorante transeunte já se deu conta que se o trânsito está interrompido no local, não passam carros. E se não passam carros é obvio que não vai ter nenhum acidente automobilístico no local. - contrapõe o bobo do trânsito.
- E quantas mortes nós evitamos com essa impopular medida? Quanto vale uma vida perdida? É isso que nós temos de dize ao povo! - ergue-se Poliana, ignorando, como sempre, os argumentos contrários aos seus e com os olhinho de biscuit lacrimosos, incorporando a velha e popular deusa de Horário Eleitoral.
- Nenhuma. - afirma um assessor pesaroso – Eu revirei e mexi todos os arquivos e não consegui achar ninguém que tivesse morrido atropelado nessa rótula antes do fechamento. Um colono levou um coice duma égua há uns sessenta anos, mas infelizmente sobreviveu.
- Não é possível! - desespera-se a rainha.
- Mas é verdade. Só houve pequenas colisões no local. Para-choques avariados, sinaleiras quebradas, arranhões na pintura...,mas morte, morte mesmo, nenhuma.
- Não importa! - anima-se Poliana, otimista. - Vamos divulgar que reduzimos as colisões no reino! Pronto, tá decidida a parada. Meus adoráveis vasos ficam!
- Nós também já estamos divulgando esses dados há anos, rainha. Mas qualquer um com um pingo de noção, inclusive a temível e maledicente Imprensa Livre, já se deu conta que as colisões só mudaram de local. Agora, ocorrem duas a três quadras adiante. Em resumo: os vasos não prestam para nada. Só atrapalham o trânsito, como o povo já concluiu logo na primeira semana dessa palhaçada. - argumenta outro bobo,um pouco mais impertinente.
- Povo, povo, povo! Quem deu o direito dessa gente se manifestar? Esse ano nem tem eleição! - grita a rainha, batendo os pezinhos miúdos no asfalto - Quem se importa com o povo? O importante são meus vasos! E o meu orgulho! Eu não posso simplesmente voltar atrás em uma decisão tão importante. Com que cara eu vou sair nas ruas? - choraminga Poliana, desiludida.
-Vamos fazer assim, Poliana. Vamos abrindo as rótulas aos poucos. Primeiros trocamos os vasos por barricadas. Dizemos que os vasos estavam avariados. Depois de alguns dias colocamos cones. Aos poucos vamos tirando um cone por vez. Tudo na calada da noite, sem chamar a atenção. Em algumas semanas o trânsito vai estar fluindo novamente e ninguém vai lembrar da sua estupidez.., quero dizer, do nosso projeto anterior de mobilidade urbana.
- Oposição vai lembrar! E vai tripudiar de mim! - reclama a rainha.
- Oposição está hibernando, Poliana. Só acorda em quatro anos. - concilia outro pajem.
- E Imprensa Livre? - pergunta sua alteza, fazendo beicinho.
- É só ignorar essa infame! Nada de ouvir rádio e ler jornais por uns meses, rainha. Você vai se sentir melhor assim. - continua o outro, enquanto Poliana era desacorrentada pacificamente dos vasos.
- As novela eu posso assistir, né? - questiona a já apaziguada e conformada rainha, voltando lentamente ao seu castelo. - Agora não tem mais BBB. Eu adoro o BBB! É uma lástima não ter BBB o ano todo. Culpa da elite alienada e da mídia golpista, com certeza. Tudo é tão real, democrático e participativo por lá! Como nas nossas reuniões da OP (Orquestra Partidária), não é mesmo? - continua a perceptiva e questionadora Poliana, enquanto caminhava.
- Claro, magnânima! É igualzinho. - concorda um dos membros da orquestra, que acompanhava ansioso a rainha de volta a sua redoma.
- E se nós levássemos a questão dos vasos e do trânsito para a OP?! Nós podíamos facilmente fazer com que concordassem comigo! - anima-se a rainha.
- Nada disso! - desespera-se o bobo do planejamento com a insistência de sua alteza no controverso e impopular tema – A OP não deve debater assuntos tão complexos e de relevância para a população. Seria uma catástrofe se eles se acostumassem com isso. Mas, como nós não vamos ter onde colocar todos esses vasos, podemos dar um jeito de fazer com que uma das próximas demandas da OP seja justamente a necessidade urgente de vasos em alguma praça do reino! Brilhante ideia rainha!
- Eu sou mesmo uma rainha muito esperta, não sou! - vangloria-se Poliana – E democrática também!
- Democrática, coerente e nada, nada intransigente. - sussurra um assessor, enquanto afofava as almofadas cor de rosa da redoma de vidro fumê da rainha e ligava a TV nos últimos capítulos da novela preferida da alteza. A novela do trânsito no reino, prometia durar mais algumas semanas. Isso se não houvesse mais nenhum chilique real.

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