domingo, 9 de março de 2014

Semeadura


Com movimentos mais lentos e sem o vigor de sua mocidade distante, o velho cuidava da pequena horta no fundo de seu quintal. Mesmo tendo deixado há alguns anos a vida no campo, ainda guardava esse diminuto espaço onde mantinha vivas suas raízes. Lembrava com certa nostalgia de todos os anos em que vivera da agricultura. De sua infância sofrida e de muita miséria. Miséria que deixara para trás com suor e trabalho árduo. Vida difícil que o fizera prometer investir todo seu esforço para dar a seus filhos o estudo que não tivera. Aprendera, esse velho ignorante, que somente através do estudo e do trabalho é possível progredir na vida. Sempre acreditara nisso. Que o trabalho, ou uma profissão, formavam cidadãos de fato. É o que modernamente chamavam de inclusão social e resgate da cidadania, reflete o idoso. Pessoas capazes de tomar nas mãos as rédeas de suas próprias vidas. Seres autônomos, senhores de suas escolhas.
Por isso, não conseguia entender que atualmente famílias, há anos, dependessem para sua subsistência de migalhas de recursos assistenciais governamentais e fossem tidas e propaladas como “saídas”da miséria. Para esse ancião senil, poucas coisas pareciam mais excludentes do que tornar pessoas pobres eternas dependentes de esmolas assistenciais. Miséria e exclusão não são apenas pontos de corte, frios e estatísticos, que estabelecem a partir de quantos reais um homem deixa de ser um miserável e passa a ser um cidadão. A verdadeira cidadania se constrói, jamais se ganha. Um homem, ou uma mulher, que não é capaz de sustentar a si e a seus filhos através de seus próprios meios, esforços e recursos, será eternamente um marginalizado social. Não importam o que digam as estatísticas e propagandas, acredita o ancião. A tutela do Estado devia ser medida provisória e emergencial em um verdadeiro projeto de inclusão social, onde pobres e miseráveis tenham acesso a estudo, profissionalização e inserção no mercado de trabalho. Onde aprenderiam a ser donos de suas vidas, escolhas e histórias. Passada mais de uma década, não são mais miseráveis, alardeiam as propagandas governamentais. São e, ao que parece serão sempre, eternos tutelados pelo Estado. É a estatização da miséria, conclui o velho tristonho. Parece a subjugação definitiva e sem perspectiva de milhares de brasileiros a um Estado que não pretende semear cidadania e sim cultivar e perpetuar a submissão e a ignorância. A real ascensão social jamais chegará a essa gente, lastima o idoso. Somente em estatísticas fantasiosas e distorcidas. Estão fadados ao único caminho possível daqueles que não têm nas mãos as rédeas de suas vidas: depender da caridade de outros. Os outros de hoje, ao menos, são diferentes dos outros de outrora, pensa o velho. Não mendigam mais nas ruas os miseráveis de hoje, em busca de caridade, dizem os doutores. Quem faz caridade atualmente é o Estado. E o Estado cobra como preço apenas a subserviente gratidão, como a dos mendigos de outrora. E se vangloria disso em propagandas e discursos. Pobres e miseráveis, que sempre se alimentaram de promessas, ao menos hoje, são personagens no grande teatro que vende o país da inclusão social e têm como protagonistas pessoas tão distantes da educação, do trabalho e da autonomia, quanto sempre estiveram, entristece-se o idoso. Erradicaremos a pobreza, dizem as propagandas oficiais. Ao menos nas estatísticas, conclui o velho. Acredite quem conseguir. Quem sabe consigamos, algum dia, que miseráveis se tornem cidadãos de fato nesse país de ex-quadrilheiros e eternos falastrões, sonha ainda o idoso, enquanto semeia a terra.

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