sábado, 24 de maio de 2014

A prospecção de consciência de Poliana


Uma encarangada Poliana descansava em seu divã nesses primeiros dias em que o frio chegara ao reino. O tempo acinzentado e chuvoso causava certa depressão na sempre otimista e vívida rainha. Para superar as baixas de humor, costumava ler e assistir todas as matérias e propagandas oficiais de seu reinado. Toda a cor e a alegria, temperadas com boas doses de fantasia e ilusionismo, que sua competente equipe divulgava, eram o elixir perfeito para levantar o ânimo de sua alteza. Mas nesse dia não estava dando certo. Poliana achava-se mais crítica que de costume.
- Às vezes, Espelho Mágico, eu fico pensando se nós não exageramos na ilusão de ótica em nossos discursos e propagandas. - reflete sua majestade, folheando os jornais da semana.
Ora, Poliana! É claro que sim! Nosso objetivo como corte real é mostrar o que o povo gostaria de ver, não o reino  ou a realidade como ela é. Isso sempre foi consenso. - responde o outro, sem entender a tal crise de consciência da rainha.
- Eu sei disso, mas não sei se não andamos abusando na dose. Nem todo mundo é estúpido, você sabe. Ainda tem gente que consegue ler e interpretar. Cada vez menos, é verdade, mas eles ainda existem. Você, por exemplo, sabe o que é prospecção?
-  É uma palavra que toda nossa corte usou esta semana para enaltecer o sucesso de nossa última feira. O que quer dizer eu não sei, mas é pomposa e faz boa figura nos discursos.
- Prospecção, Espelho, é algo que poderá vir a acontecer. - explica Poliana, com ar professoral, surpreendendo o companheiro que desconhecia esse intelecto mais apurado da rainha.
- Sei... e daí?
- Nós divulgamos, para todos os ventos, que na feira de negócios imobiliários foram movimentados milhões em prospecções. Você entende o que isso quer dizer em termos de negócios práticos? Absolutamente nada!
- Ainda não entendi, milhões é muita coisa.
- Milhões de intenções, seu estúpido. - responde a rainha, já começando a perder a paciência. - Quer dizer que cada um que entrou na tal feira e manifestou seu sonho de comprar um apartamento de 100 mil, nós contabilizamos como 100 mil em prospecção. A imensa maioria, nós sabemos, não comprou, nem vai comprar nada. São só números idiotas, para idiota ver. 
- Entendi! Nessa nossa lógica, se cada um que sonhar em ter uma Ferrari for contabilizado pela montadora, vai faltar zeros no mercado! - conclui o Espelho Mágico.
- Exatamente! - deprime-se ainda mais a monarca.
- Mas isso não deve preocupá-la, rainha. O povão, assim como eu, não tem a menor ideia do que quer dizer prospecção. Eles só vão enxergar nas propagandas os milhões movimentados e acreditar que são todos ricos no reino. E graças a nós! É perfeito!
- Sei. Assim como dizer que quem vive com salário mínimo é classe média. - ironiza a rainha, ácida.
- Credo Poliana! Hoje você está com o humor mais negro que piche!
- Por falar em piche, olha só essa matéria com nosso bobo das obras. O que você vê nessas fotos?
- Nossos serviçais de carreira, abaixo de chuva, pisoteando asfalto grudento em uns buracos de nossas vias.
- O que você pensaria, ao ver essa cena, se você fosse um contribuinte e não um adestrado e alienado membro de nossa corte?
- Que se trata de um número do circo de palhaços que está acampado no reino. - confessa.
- Exatamente! - afirma a monarca, deprimida.- Pois é. E o que é que nosso bobo das obras anunciou na imprensa? Que trata-se de um novo material, ultramoderno, melhor que o asfalto tradicional para tapar buracos. E que tem uma característica peculiarissima para uma tecnologia tão avançada. Precisa ser compactada com os pés, para melhores resultados. E abaixo de chuva! - enfatiza sua alteza, com escárnio.
- Interessante, mesmo. Talvez devêssemos abrir cotas para gordos no próximo concurso. Para essa atividade específica. Os resultados dos tapa buracos seriam ainda melhores. - sugere o visionário companheiro.
- Sim, pois a cota de caras de pau eu já esgotei com nossa corte. - desilude-se sua alteza. - E para ir mais além, nosso bobo ainda afirmou que esse troço grudento é muito mais caro que piche ou asfalto, e que só usamos em buracos emergenciais que surgem em dias de chuva. Ora, tenha santa paciência! Todos os súditos sabem que nós deixamos por anos os buracos no asfalto se procriarem a vontade. Agora, tiramos do chapéu uma meleca cara para tapar os buracos em períodos de chuva. Como se, de repente, o reino tivesse sido assolado por meses de chuvas torrenciais e nós por uma súbita preocupação com os solavancos dos motoristas. O que você pensaria, Espelho, ao ouvir tanta bobagem?
- Que nós arrumamos um jeitinho de faturar com os tais buracos.
- Isso mesmo! E o que você acha que eu, como soberana responsável, eleita e aclamada por meu povo, devo fazer?
- Cancelar a compra desse produto caro e dar um puxão de orelhas no bobo das obras?
- Claro que não, seu estúpido! Tenho que torcer para que esse inverno seja muito, mas muito chuvoso! - declara a monarca, esfregando as delicadas mãozinhas, e já refeita de sua súbita crise de consciência. - E de hoje em diante, não leio mais os jornais. Traga-me apenas as previsões do tempo. E trate de me fazer um chocolate quente! Detesto esse frio, mas adoro uma chuvinha. “Tomara que as prospecções de chuva sejam fartas e que se concretizem nesse inverno.” - pensa Poliana, com a consciência sempre bem lavada com dinheiro público.

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