sábado, 7 de junho de 2014

Poliana, a rainha mãe do rally


Uma encharcada e enlameada Poliana adentra esbravejante em sua redoma, para atirar-se em seu confortável divã cor de rosa. As provas do rally tiveram fim. Sucesso de público e organização, mesmo sem ter sido obra da rainha e sua corte.
- Credo! Quanto barro e lodo nesse negócio de rally. Olhem só os meus sapatos caríssimos! Completamente inutilizados! - queixa-se a contrariada monarca.
- Eu bem que avisei que botinhas de camurça não combinavam com o evento. - lembra o assessor de marketing real e personal stilyst de sua alteza.
- Mas eu precisava dar um toque de requinte naquela jaquetinha sem graça. A cor não me valorizava. E depois havia centenas iguais a minha! Onde já se viu tamanho desaforo! Para o próximo rally exijo um modelito exclusivo. À altura da minha classe e posição.
- Providenciaremos, alteza. - concorda um dos bajuladores real.
- Nossa! Que dor nas pernas! Quem foi que teve a infeliz ideia de criar um esporte onde nós, os espectadores, temos de ficar horas de pé, sem qualquer conforto?
- É um rally, Poliana. Não um desfile de modas. O que você esperava? Poltronas e ar condicionado? - pergunta o bobo do marketing, um tanto impaciente. - E depois, você muito pouco ficou em pé. Nós, seus bobos da corte, lhe carregamos nos ombros a maior parte do tempo. Como sempre, aliás.
- Não fizeram mais que a obrigação! Não esqueça, queridinho, que sou eu que sustento todos vocês em seus carguinhos. Seu bando de inúteis! - indigna-se sua alteza, ultrajada.
- Na verdade, quem nos sustenta são os contribuintes.- sussurra o outro.
- Mas isso são águas, e barro, passados. O próximo rally será completamente diferente. Nada de gente pendurada em barranco há quilômetros da civilização. Meu projeto inclusivo, democrático e participativo de um rally popular e cidadão, será enfim implantado.
- Pronto! Era só o que faltava. Quando a companheirada emenda todas essas palavras vazias em um projeto, já sei que vou ter de me espichar em mídia e marketing para justificar mais uma ideia ridícula e que não serve pra nada. - desabafa o bobo mor do ilusionismo patrocinado com dinheiro público.
- Pois você está completamente enganado. Há anos eu venho maquinando uma forma de fazer essa pocaria de rally, que vocês, seus colonos, acham grande coisa, em um evento civilizado e a altura do reino que eu construí.
- E o que você pretende fazer, rainha? - questiona o bobo, já temendo a resposta.
- Vou transferir as provas para a zona urbana do reino, é lógico!- declara a monarca.
- Na cidade? Você só pode estar brincando! - espanta-se o outro.
- É seriíssimo! Eu sou uma desportista nata, e uma visionária sem precedentes. O esporte só terá a ganhar no meio urbano. Ganharemos status internacional.
- Já temos status internacional! E não tem como fazer rally na zona urbana, Poliana! É um disparate!
- Você, meu bobo do marketing pirotécnico, anda tão imerso nas propagandas fantasiosas e mentirosas que divulgamos, que se esquece de olhar o reino como ele está. Como você enxerga as ruas e avenidas de nosso reino sem o photoshop?
- Uma buraqueira infernal.
- Mais que isso. É buraco e poeira em dias de sol. E ainda mais buracos e lama em dias de chuva. Cenário perfeito para o rally! E com muito mais emoção! Boa parte de nossas ruas estão em muito piores condições que aquelas estradinhas cercadas de pirambeiras e grotas que vimos nas últimas provas. E devem ficar ainda piores. Os pilotos vão precisar de muita mais destreza para desviar dos buracos, não afundar nas crateras ou fraturar a coluna com os solavancos, e, ainda, saltar em nossas travessias elevadas para alpinistas. Vai ser pura emoção!
- Você está louca, rainha?! Isso não tem o menor cabimento. - desespera-se o outro.
- Sem contar com a comodidade dos espectadores que poderão assistir a tudo de suas sacadas e janelas. No conforto de seu lar. Sem chuva e frio para atrapalhar. Faremos o povinho de Mônaco morrer de inveja! - entusiasma-se a monarca.
- Em Mônaco tem prova de Fórmula 1! É completamente diferente!
- É claro que eu sei as diferenças, seu molóide! - desdenha a rainha - Os carros são bem menores. Lá o asfalto é um tapete. Os impostos pagos pelo contribuinte são investidos e não subtraídos. E a corte real não é uma cambada de inúteis, mamadores dos recursos públicos, como aqui. Mas eles não tem uma rainha com o meu encanto, nem a visão privilegiada e de longo alcance que eu possuo. - conclui, erguendo o queixinho em orgulho.
- Mesmo assim, rainha! Não tem como transferir o rally para o centro do reino em tão curto tempo. - argumenta o marqueteiro, quase em pânico.
- Você é muito novinho, e ainda inexperiente no ramo da incompetência administrativa, benzinho. Com um inverno bem chuvoso, nossa conhecida ineficiência e morosidade em resolver problemas simples e corriqueiros, como tapar buracos e repavimentar vias públicas, em poucos meses todas as ruas do reino farão Dakar se corroer de puro despeito. É só deixar tudo sob minhas ordens e nas mãos, mais afeitas ao violão que ao trabalho, de nosso bobo das obras. Até o próximo rally, não haverá mais asfalto entre os buracos. Só haverá brita sobre pó de brita. Perfeito para as derrapagens! Pura emoção e deleite para a torcida. Enfim, o rally que eu idealizei na estrutura viária que eu negligenciei. Não é a cara de meu reinado? - conclui a oportunista Poliana, como sempre imbatível na arte de transformar a desgraça dos súditos em marketing institucional e promoção pessoal.



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