domingo, 27 de novembro de 2016

Expiação socialista

O lugar era escuro e o calor insuportável e escaldante. O mormaço desconfortável tornava a respiração pesada e difícil. O suor lhe escorria na fronte e já pingava pelos fios grisalhos da barba um tanto rala. O ambiente era claustrofóbico e úmido. Um labirinto. O homem apertava os olhos embaçados para tentar descobrir o caminho certo a seguir. Uma encruzilhada à frente lhe fizera parar e relutar, em dúvida.

- Avante, General! À esquerda! Essa sempre foi sua escolha! – ordena uma autoritária voz, com um sotaque bem diferente do seu.
Acostumado a mandar, o homem ainda titubeou um pouco antes de decidir por seguir as ordens daquela voz, um tanto fina, mas firme, decidida, e definitivamente arrogante. Um pouquinho de seu orgulho já se esvaíra com o suor que lhe empapava a farda verde-oliva. Caminhou por quilômetros. Ou teriam sido metros? Os coturnos nunca lhe pareceram tão pesados. Que falta lhe faziam seu tênis Nike. Malditos Imperialistas Ianques! O embargo, que não lhe perseguira em sua longeva e farta vida material, pelo visto lhe atingiria por toda o resto de sua existência infernal.

No final do úmido e mormacento túnel, havia, não luz, mas uma solitária brasa. E em direção à brasa o general se dirigiu, com os pesados passos de noventa anos bem vividos e o peso de muitas vidas bem fuziladas. Vendo-se livre daquela masmorra opressora, suspira aliviado. Mas é acometido por um surto de tosse, ao inalar o ar carregado com o forte cheiro de enxofre do local.

- Heil, Fidel!  - saúda o homem baixote e empertigado, de farda engomada e impecável, ralos fios de cabelo lambidos e repartidos para o lado, com o diminuto bigodinho negro sobre os lábios, e a reluzente e imponente suástica no braço. – Beienvenido, el general! – improvisa o ariano, em raro momento de concessão com raças inferiores.  Trazia, Adolf, entre os dedos, um charuto. Que maravilhosa constatação, pensa Fidel, entre uma tossida e outra, ter sido justo a tênue chama de um charuto que o conduzira no labirinto do inferno. A essas alturas, toda ilha devia estar em prantos por sua súbita e precoce ausência, lastima el capitan.

- Beba isso, comandante! – Oferece o alemão, seco, uma dose de Rum com gelo. – A travessia dos portais do inferno sempre é árdua para nós, os grandes.

O homem, em grandes e sedentos goles, rapidamente esvazia o copo, que novamente é enchido pelo outro. Já na terceira dose, Fidel lança pela primeira vez o olhar para o local. Era uma diminuta sala, com uma cama estreita, uma latrina e uma pia. Só se diferenciava de uma cela pela presença de uma poltrona em frente a uma tela. Curioso, pensa o revolucionário, pelo visto há entretenimento no inferno.

Voltando novamente os olhos para seu anfitrião, surpreende-se com o aspecto do mesmo. Já não lhe parecia o mesmo homem de minutos atrás. Talvez o calor tivesse turvado sua percepção inicial, constata. A pele acinzentada revestia um rosto ossudo e encovado, e o corpo encurvado parecia mal conseguir sustentar o peso da farda. Não lembrava em nada o empertigado Adolf Hitler das fotos dos livros de história.

- Então é aqui que eu vou ficar? – pergunta.

- Sim. – responde o ariano.

- É bem melhor do que eu esperava. Sou um líder revolucionário. Já dormi em lugares muito piores que este. Vou me adaptar facilmente. – constata Fidel, estufando o peito rejuvenescido após a passagem. – E a comida é boa?

- Depende.

- Depende do quê? Do meu comportamento aqui no inferno?

- Não, comandante. – responde Adolf, com um discreto suspiro. – Depende da comida que você mandou dar aos presos de seu tempo.

Tentando disfarçar o desconforto com a notícia, Fidel resolve mudar de assunto e questiona ao outro:

- E essa tela? Vou assistir a mesma programação que obriguei os cubanos a assistirem esses anos todos? Eu posso ver a repercussão mundial com a minha morte? Estou louco para ver o pronunciamento de Barack!  E o pesar legítimo da maravilhosa América Latina nas palavras de Maduro, Evo, Luís Inácio e Fernando Henrique.

- Não, Fidel. – reponde Adolf, parecendo cada vez mais cansado e até um pouco triste. – Nessa tela não passará nenhum de seus intermináveis e cansativos discursos. Muito menos as lamúrias de políticos idiotas e hipócritas por sua morte. Essa tela, el comandante, é a sua penitência.

- Um telão?! -  pergunta o general, olhando com descrédito para o objeto branco. Se soubesse que a pena seria esta, talvez tivesse se entregado bem antes dos noventa.

- Nessa tela, comandante, passarão continuamente, não a sua vida, mas a vida e a história de cada cubano que você prendeu, perseguiu, torturou ou matou. – informa o outro.

- Eu não cheguei onde cheguei sendo um fraco, Adolf! – empertiga-se Castro. – O sofrimento e a morte nunca me acovardaram. Sou o que sou por me dedicar a uma causa.

- Interessante, Fidel. Usei palavras parecidas quando Mussolini aqui me recepcionou há tanto tempo.  Ele chegara aqui poucos dias antes de mim. – relembra o ariano, fixando os olhos no recém chegado. Olhos sem nenhum brilho e que pareciam carregados de uma agonia que fizeram o socialista se arrepiar. – Mas, el comandate, você não vai apenas assistir. Seria uma pena branda, não é verdade? Você vai sentir, Fidel. Sentir tudo o que sentiram suas milhares de vítimas. A raiva, a revolta, o sofrimento, a fome, a angustia, o medo, a dor. Vais sentir a morte, Fidel. Milhares de mortes! E vais senti-las, milhares de vezes, até que tenhas entendido a imensa inutilidade de cada uma delas. Até que te arrependas de todas. Essa é tua pena. E aqui, como em tua ilha, ou em minha Alemanha nazista, não há recursos. – informa Adolf, dirigindo-se cansativamente para o labirinto. – Boa sorte, Fidel. – deseja o outro, em um quase sussurro de despedida.

- Espere! – grita o comandante. – Isso não é justo! – argumenta, exaltado. – Tudo o que fiz, fiz em nome de um ideal de justiça social e igualdade! Almejava uma ilha sem desigualdades ou privilégios burgueses, com saúde e educação para todos! Fiz tudo em nome de um bem maior! Sempre tive as mais justas e boas intenções! – argumenta o ícone socialista, nababo caribenho que degustava lagostas enquanto seu povo se prostituía para complementar a ração mensamente fornecida pelo Estado.

Sob o umbral da saída, Hitler para por um breve momento e voltando lentamente a cabeça reponde ao revolucionário comunista: - É como se diz lá no mundo terreno, Fidel: de boas intenções o inferno está cheio! Hasta la vista, el capitan! – despede-se o ariano, abandonando o recinto.

Sozinho, Fidel vê o lugar tornar-se escuro e a tela, que agora lhe parecia imensa, se iluminar com imagens espetacularmente reais de uma mata, Sierra Maestra! Era como se ele tivesse sido jogado para dento da tela. Sentia-se ofegante, como se tivesse corrido milhas. Sentia medo! Um medo sufocante que lhe oprimia o peito. Estava sendo perseguido. Precisava escapar! Não conseguira. Fora capturado. Sentia a dor dos golpes e o gosto de sangue na boca. Perdera a consciência. Acordara e sentira um cheiro nauseante. Virara o rosto tentando identificar de onde vinha o odor asqueroso. Então, o vira. Che! Neste momento, Che ergue uma faca imunda em sua direção. Fidel tenta lutar, o pavor lhe faz tentar resistir. Mesmo apavorado, enxerga um outro jovem atrás de Chê, que gargalha com outros, assistindo a degola eminente. Era ele mesmo, Fidel! Dono de todas as certezas e confiante de que todos os meios justificam qualquer louvável fim. – Não! – grita Fidel para ouvidos moucos. – Sou eu! Sou eu camaradas! – tenta argumentar antes de sucumbir a primeira das milhares de mortes que o aguardavam no inferno.

Assim passou Fidel, sua primeira morte no inferno. A primeira de milhares.

Mas este é só um conto, uma ficção. Fidel sempre será o revolucionário idealista e utópico das esquerdas. E um ditador assassino e cruel para os demais.

Onde quer que estejas Fidel Castro, que lhe sejam justos teus julgadores, da mesma justa forma como justo fostes com os teus opositores.

 

 

 

 

 

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